Há quase um ano, a população de Miguel Calmon e região, a cerca de 370 km da capital baiana, foi pega de surpresa com a notícia da concessão à iniciativa privada do Parque Estadual das Sete Passagens (Pesp), Unidade de Conservação de Proteção Integral.
Desde 2020, o Governo do Estado da Bahia e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) começaram a estudar a possibilidade de desenvolver processos de concessão em cinco parques baianos: três deles em Salvador; um na zona turística da Chapada Norte (o Parque Estadual das Sete Passagens), e outro na região de Ilhéus (O Parque Estadual da Serra do Conduru). A iniciativa faz parte do Programa de Estruturação de Concessões de Parques Naturais, do referido banco, no âmbito do Projeto de Desestatização do BNDES. Além da Bahia, mais cinco estados (Tocantins, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pernambuco e Rio Grande do Sul) aderiram ao programa.
No entanto, as comunidades locais, que incluem quilombolas e grupos tradicionais, a equipe gestora da Unidade, associações, sindicatos, cooperativas, diversas entidades da sociedade civil e até representações políticas, receberam com receio a notícia. A principal crítica refere-se à falta de consulta pública sobre o objeto final do projeto (concessão), considerando que as comunidades não foram ouvidas durante os estudos de viabilidade econômica nem no decorrer do processo de instauração da licitação, conforme prevê a legislação.
Segundo o governo estadual, um dos propósitos da iniciativa é fomentar o turismo sustentável e o desenvolvimento socioeconômico, atraindo investimentos para aprimorar a qualidade dos serviços prestados, com a consequente melhoria da experiência dos visitantes. O estudo, conduzido pelo BNDES, propõe a expansão da infraestrutura turística por meio da criação de redários, estruturação de camping e de pequenas hospedagens à beira de encosta, além de locais para alimentação, o que resultaria em mais empregos para a população local.
Na última audiência pública virtual, ocorrida no dia 27 de janeiro, através do canal Sema Bahia no YouTube, a Secretaria do Meio Ambiente e o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) apresentaram a proposta de concessão elaborada para o Parque Estadual das Sete Passagens. Foram coletados 125 questionamentos, esclarecidos e/ou anexados como contribuição à proposta do projeto. Após essa etapa de consulta, que segue aberta até o dia 7 de fevereiro (www.inema.ba.gov.br/atende/concessao-dos-parques/), uma nova versão da modelagem será feita, em tese, considerando-se as contribuições recebidas.
Todavia, prevalece a polêmica. “A audiência foi um fiasco! Todo o processo foi atropelado e sem a devida transparência. Estamos questionando juridicamente porque não é suficiente apenas a lei federal. É preciso, no mínimo, uma regulamentação na Bahia antes de qualquer decisão. Precisamos ouvir as partes! As comunidades não receberam visitas nem foram consultadas antecipadamente às audiências a respeito das concessões. Defendemos um turismo comunitário! A proposta prevê taxa de R$20 a R$40 para acesso ao Pesp, inviável economicamente para os moradores dos municípios que o compõe, em especial do entorno do Parque. A concessão é por 30 anos. E se for uma catástrofe? Teremos de aguentar todo esse tempo?!? explica Paulo Henrique Muricy, membro da ASPAFF Chapada Norte, uma das associações integrantes do Conselho Gestor do Parque.
A primeira etapa abarcava visitas técnicas às unidades de conservação, além de pesquisas e oficinas nas comunidades do entorno. Porém ocorreram apenas duas reuniões virtuais com o Conselho Gestor do Pesp, em abril e dezembro de 2021, para tratar da análise de viabilidade e das etapas concluídas do processo de estudo, respectivamente. “Para nossa surpresa, dentre as etapas finalizadas, está o diagnóstico socioambiental, ainda que não se tenha conhecimento do levantamento in loco da equipe responsável. Quando questionados sobre essa ausência, a alegação por parte do governo foi a de que o diagnóstico socioambiental se deu com a reunião do conselho gestor realizada em abril, quando nada foi deixado claro sobre o destino/uso da unidade e, principalmente, de seus recursos hídricos”, destaca trecho do manifesto, assinado por quase 30 entidades.
Principais Críticas
Os questionamentos que pairam sobre as comunidades direta ou indiretamente envolvidas com o Parque estão relacionados à inexistência de consulta pública sobre a possível concessão, em lugar de audiências virtuais apenas para apresentação e levantamento de contribuições ao processo já definido. A sociedade civil organizada reclama, ainda, do formato (virtual), devido ao acesso precário à internet nas localidades em questão, sendo, em sua maioria, composta por agricultores familiares e comunidades tradicionais. Ao lado desses pontos, estão o manejo dos resíduos e das águas e como se daria o acesso ao Parque por parte dos moradores locais após a concessão à iniciativa privada.
Para a advogada e professora Gabriella Barbosa, a Frente de Articulação em defesa do Pesp é constitucionalmente legítima e socialmente justa, pois o Parque foi criado como resultado de uma intensa mobilização popular, tendo como objetivo a proteção dos recursos hídricos e a preservação da biodiversidade, e não a exploração comercial de serviços turísticos, baseada na lógica do capital. Sendo assim, a população e as comunidades que vivem no Território que abriga a Unidade de Conservação possuem o direito de ser devidamente ouvidas e previamente consultadas sobre a proposta de concessão privada, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
“A consulta pública deveria ter antecedido a realização da audiência que ocorreu no dia 27 de janeiro, pois um processo de licitação dessa natureza, suscetível de afetar as comunidades tradicionais diretamente, não poderia ter sido iniciado sem consulta, sem boa-fé, sem estar de acordo com as condições de acessibilidade da população e sem o acordo e o consentimento das comunidades sobre as medidas propostas. O projeto de concessão sequer menciona a existência de comunidades quilombolas, tanto no município de Miguel Calmon quanto em Jacobina. Tampouco avalia os impactos ambientais que o aumento exponencial de visitação ao Pesp poderá causar, pois, conforme previsto no projeto, poderá haver a ampliação de 20 mil para 45 mil visitantes ao ano. Além disso, não foram realizados estudos sobre a viabilidade hídrica e sobre os impactos ambientais, o que preocupa as comunidades que não possuem outorga de água. Não houve escuta, consulta nem consentimento comunitário; não foram realizadas as oficinas, pactuadas com a equipe proponente”, destaca Gabriella.
Ainda de acordo com a professora, “a decisão do poder público de colocar o Pesp sobre processo de concessão à iniciativa privada viola os instrumentos normativos de proteção dessa importante Unidade de Conservação de Proteção Integral, a começar pelo descumprimento do Decreto Estadual nº 7.808, de 24 de maio de 2000, que estabelece, como objetivo do Parque, a preservação dos recursos hídricos das áreas das Serras do Campo Limpo, da Sapucaia e Jaqueira, localizadas no Polígono das Secas, e a proteção de nascentes que suprem o Rio Itapicuru-Mirim, de grande relevância para a Bacia do Rio Itapicuru, garantindo o abastecimento d’água para a população local e para as atividades agropecuárias”.
A Lei Federal nº 9.985/2000 e a Lei Estadual nº 10.431/2008 proíbem, nas unidades de conservação, quaisquer alterações, atividades ou modalidades de utilização em desacordo com os seus objetivos, Plano de Manejo e regulamentos. Diante da análise que vem sendo feita pelo movimento em torno desse processo de concessão, não só o processo licitatório está eivado de nulidade, como também o projeto apresentado pelo BNDES para exploração de serviços de apoio, visitação de atrativos e instalações turísticas no Pesp, que não obedece ao Plano de Manejo, o qual determina a elaboração de um Plano de Uso Público para a atividade ecoturística.
“É importante ficar claro que o objetivo básico das Unidades de Proteção Integral é preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais. E foi para isso que o Pesp foi criado! A definição sobre o modelo de turismo que se quer praticar no entorno do Parque só tem sentido se for realizada com a efetiva participação da sociedade, garantia de escuta e de decisão das comunidades, especialmente as tradicionais que vivem no seu entorno. Se a justificativa do poder público para a concessão do Pesp é a incapacidade financeira e de recursos humanos para a manutenção de sua gestão, também existem outras políticas públicas fomentadas pelo próprio Governo do Estado que podem ajudar a resolver o ‘problema’, a exemplo da Política Estadual de Turismo de Base Comunitária, instituída pela Lei n° 14.126/2019. A soberania popular é um direito fundamental e definitivamente precisa ser respeitado pelos governantes! As populações e comunidades que de direito habitam o Território do Parque Estadual das Setes Passagens também têm o direito definir o seu destino”, conclui a docente.
O Pesp estava fechado desde o começo da pandemia, o que já vinha sendo alvo de críticas dos manifestantes, que consideram a ação uma estratégia para a entrega da Unidade à iniciativa privada.
Frente de Articulação
Além de reuniões realizadas no distrito de Itaitu, em Jacobina, situado na zona de amortecimento do Pesp, e na sede de Miguel Calmon, nos dias 23 e 26 de janeiro, respectivamente, as entidades evolvidas com o debate em prol do Parque mantêm campanha nas redes sociais, com destaque para as hastags #Pespresistencia #oparqueénosso
No último domingo, 30 de janeiro, ocorreu audiência popular no povoado Água Branca, em Miguel Calmon, reunindo aproximadamente 200 pessoas. Na ocasião, foi compartilhado documento listando sete razões contrárias à proposta governamental. A opinião dos presentes foi unânime quanto à não concessão do Parque à iniciativa privada.
Nesta quinta-feira, 3 de fevereiro, a partir das 15h, haverá nova audiência pública virtual, organizada pela Frente Parlamentar Ambientalista do Estado da Bahia, em parceria com a Associação de Ação Social e Preservação das Águas, Fauna e Flora da Chapada Norte (ASPAFF). No dia 4, às 8h30, acontece outra reunião virtual do Conselho Gestor do Pesp com pauta única relacionada ao processo de concessão.
Manifesto
Quase 30 entidades assinam o manifesto, que destaca a relevância histórico-cultural, socioeconômica e ambiental do Parque Estadual das Sete Passagens: ...“Reiteramos que nossa natureza é sagrada, temos territórios autônomos e não consentiremos que nossos bens naturais sejam especulados por setores neoliberais em que colocam os lucros acima da vida. Acreditamos na capacidade de gestão pública, principalmente nas unidades de conservação ambiental, e lutaremos, até as ultimas consequências, pela melhoria dos espaços de participação social, em função de um Estado de direito mais democrático e da melhoria das políticas ambientais”, finaliza o documento.
Saiba Mais
Criado em maio de 2000, o Parque Estadual das Sete Passagens, Unidade de Conservação de Proteção Integral, está inserido na Bacia Hidrográfica do rio Itapicuru, com uma área estimada de 2.821 hectares. Abriga potencial hídrico de grande relevância local, por estar situado no Polígono das Secas, com vegetação e cadeia de montanhas que favorecem a contenção da umidade, resultando em maior pluviosidade, ou seja, as chuvas, fundamentais para a manutenção da malha hídrica.
No Parque e em seu entorno, existem diversas nascentes que suprem riachos, que, por sua vez, contribuem sobremaneira para alimentar o rio Itapicuru-mirim, afluente da Bacia do Itapicuru. Diversidade de flora e fauna, incluindo espécies ameaçadas de extinção estão presentes na Unidade, que, além de Mata Atlântica, apresenta vegetação da caatinga, do cerrado, campo rupestre e matas ciliares.
A infraestrutura atual dispõe de quiosque com banheiros para visitantes; alojamento para os guardas-serviços de guia, área de camping e cozinha. As trilhas são dotadas de corrimãos e pontes.
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