TVs de última geração, cozinha superequipada,
churrasco com carne de primeira e dinheiro de sobra. Não, não estamos
falando de turistas milionários que vieram ao Brasil se divertir na
Copa. Estamos descrevendo a rotina de duas grandes penitenciárias
brasileiras. Nessas cadeias, preso que tem dinheiro, tem tudo. Dois
trechos de gravações telefônicas mostram o que acontece dentro da
cadeia.
Preso: Oi, linda.
Namorada: Tô aqui no mercado. O que eu levo pra ‘tu’ comer?
Preso: Leva uma carne boa.
Namorada: Costela mesmo?
Preso: Isso.Preso: Amanhã também tem um churrasco aqui.
Bandido: Churrasco aí?
Preso: Tem uns dois mil ‘espetinho’ que vai ter aqui ‘pra nóis’. Só espetinho de primeira, só com bacon, é queijo, só coisa boa.
Os
homens que você ouve nas ligações no vídeo acima, tranquilos, comprando
carne, organizando churrascos, não estão livres. As escutas telefônicas
foram feitas na Penitenciária de Aparecida de Goiânia, e no Presídio
Central de Porto Alegre.
Os homens que falam a vontade ao
celular nem parecem criminosos que estão na cadeia. As gravações tiveram
autorização da Justiça.
No final de maio, o Ministério Público
do Rio Grande do Sul apresentou denúncia contra 41 pessoas, envolvidas
em uma quadrilha comandada por trás das grades. “Presídio Central, da
porta para dentro, é comandado pelos presos”, afirma Ricardo Herbstrith,
promotor de Justiça do Rio Grande do Sul.
Segundo a
investigação, os chefes de facções criminosas, dentro da cadeia, não
organizam apenas churrascos. Também têm livre acesso a celulares e à
internet.
Imagens feitas do alto mostram um preso ao telefone.
Em uma gravação, um dos bandidos chega a acompanhar, em tempo real, da
cadeia, a entrega de dinheiro de tráfico de drogas na casa luxuosa de um
dos chefes da quadrilha, preso na mesma penitenciária.
Bandido: Estacionou ali e ele botou a chave ali, ‘tá’ ligado?
Preso: Claro, eu ‘tava’ vendo ali pela câmera, meu.
“Dentro do presídio, com smartphone, com 3G funcionando, acompanhava todas as câmeras de segurança da sua casa”, diz o promotor.
Os
chefes do crime comandam, cada um, uma galeria do Presídio Central. São
chamados de “prefeitos”. “Tem vários cargos dentro da galeria. Um dia
eu perguntei para um preso: ‘Está trabalhando na galeria?’, ‘Sim’, ‘Faz o
que lá?’, ‘Eu sou ministro dos Esportes’”, conta Sidnei Brzuska, juiz
da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre.
Acompanhado
pelo juiz responsável pela fiscalização da unidade, o repórter Giovani
Grizotti visitou o presídio e entrou nas celas dos tais “prefeitos”.
Ventiladores,
aparelho de som, uma geladeira duplex com bastante comida, tem até
iogurte e também achocolatado. Em outra cela, ventilador, TV de tela
plana e uma geladeira duplex. Dentro dela, carne congelada, margarina,
suco de fruta, mamão, café, ventilador, cama de casal, liquidificador e
também aparelho de som.
O dinheiro que sustenta tanta mordomia
vem de roubos e tráfico. E também da extorsão de parentes de outros
presidiários, geralmente pessoas presas pela primeira vez.
“Ameaçava todo mundo lá de casa, meus filhos, mãe, todo mundo se não pagasse“, diz uma pessoa.
Fantástico: Começou levando quanto?
Pessoa: Duzentos. Daí ‘pra’ quinhentos.
Fantástico: Por semana?
Pessoa: Na semana, eles pediam.
As
namoradas e mulheres dos chefes também têm prioridade para entrar no
presídio, e esse privilégio fica registrado nos computadores da
Secretaria de Segurança Pública.
“Essa prioridade faz com que
elas cheguem lá e não percam tempo em fila. É o absurdo dos absurdos”,
comenta o promotor Ricardo Herbstrith.
Em uma das gravações, um
dos chefes dos bandidos, conhecido como Ben Hur, mostra que controla não
apenas o presídio, mas também os gastos excessivos da companheira.
Ben Hur: Gastou mais de 10 mil esse mês.
Namorada: Mais de 10?
Ben Hur: Bem mais, filha. Soma, desde o começo do mês.
“Os
presos têm absoluta liberdade, absoluto domínio sobre o espaço interno
das galerias e, dali, eles comandam o crime”, ressalta o promotor.
Em mais uma gravação, outro chefe, conhecido como Capa, conversa com um assaltante que acabou de roubar um carro.
Bandido: O carro é sedan, automático, dá no nosso?
Capa: A frente, o que nós vamos usar é a frente. Mas, é 2013?
Bandido: É 2013.
O
automóvel seria clonado, ou seja, os bandidos usariam partes e
documentos de outro carro para escapar da fiscalização. A vítima não
quer mostrar o rosto: “Ele chegou até a engatilhar a arma e colocar na
minha cabeça. Cheguei a ficar desesperado, entrei em pânico, chorei”.
A
quase 1.500 quilômetros de Porto Alegre, na Região Metropolitana de
Goiânia, o roubo de carros também é comandado da cadeia. Por telefone,
um ladrão, a serviço de bandidos presos, comemora um assalto.
“Ó, tô com a Montana. Ela tem roda, é branca, zero, zero, zerinho”, diz o bandido.
O
carro roubado é do empresário José Feliciano. “Me abordaram, já
colocaram a arma em mim. E falaram assim para mim: ‘Não, vagabundo,
passa para o banco de trás’”, conta.
Os presos na penitenciária
de Aparecida de Goiânia parecem não ter uma vida tão difícil assim. Eles
fazem churrasco, usam drogas e recebem até visitas de prostitutas.
“Mulher
não falta, não. É todo domingo. Elas vêm só pra isso. Pra fazer
programa. Você paga cem, cento e cinquenta. E bonita”, diz um preso.
Uma investigação do Ministério Público que envolveu sete promotores e durou mais de um ano revelou as mordomias.
“Carne aqui é mato, nós ‘assa’ carne toda hora”, diz um preso.
“O
escárnio é uma encomenda de 1.200 espetinhos para fazer uma festa
dentro do presídio. Isso é um escárnio”, afirma Lauro Machado Nogueira,
procurador-geral de Justiça de Goiás.
A penitenciária tem até
mesa de sinuca coletiva e videogame nas celas. As drogas são usadas
livremente. O dinheiro vem, principalmente, do roubo de carros e também
de trotes por telefone.
O golpe mais usado se chama “Bença, tia”. Nele, o bandido finge que é parente da vítima e inventa uma emergência.
Bandido: Alô.
Vítima: Oi
Bandido: Oi, tio, bença.
Vítima: Quem é?
Bandido: Surpresa boa. Qual que é o sobrinho que mora fora, que tem muito tempo que o tio não vê?
Vítima: Xi, rapaz... É o Anderson?
Bandido: Isso.
Vítima: Filha da mãe...
Bandido:
O carro quebrou. Eu chamei o mecânico, ele ‘tá’ aqui fazendo o
conserto. O problema agora é que ele não quer aceitar o cheque meu.
Vítima: De quanto seria essa coisa?
Bandido: Aqui ficou faltando mil reais.
Um
casal humilde, do interior de São Paulo, caiu na mentira. “Eles ligaram
para mim e ainda tomaram até ‘bença’. Pensei que era meu sobrinho
mesmo. Nós já comemos mal, não comemos bem. Aí, ficando sem o dinheiro, é
pior ainda”, diz a dona de casa Abadia Felício Camargo.
A
promotoria afirma que informou a Secretaria de Administração
Penitenciária e Justiça do que as investigações revelaram. O secretário
Edemundo Dias diz, no entanto, que não sabia das mordomias
Fantástico: Dentro da cadeia, os presos fazem churrasco, e até tem televisão de última geração. É verdade isso?
Edemundo
Dias, secretário de Administração Penitenciária e Justiça de Goiás:
Isso eu não tenho conhecimento. Estou tomando conhecimento agora e vou
mandar verificar. Se for constatada alguma irregularidade nesse sentido,
nós vamos tomar as providências.
Fantástico: Essa questão de churrasco. Os presos podem fazer churrasco dentro da cadeia?
Edemundo Dias: Olha, essa questão é a primeira vez que eu estou ouvindo isso.
O
Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia é composto por cinco
unidades para cerca de duas mil pessoas, mas, segundo o secretário, há
superlotação: “Aqui, no complexo prisional, nós temos 4 mil presos.
Estamos com um problema sério de presos provisórios. Eu queria mostrar
tanto a penitenciária quanto a casa de prisão provisória”.
O
secretário levou a equipe até a cadeia dos presos provisórios, mas, na
hora do setor principal, a penitenciária que abriga os condenados, mudou
de ideia e foi embora. Segundo o Ministério Público, é ali que a
situação é mais crítica.
Fantástico: O secretário tinha
autorizado a gente a entrar na penitenciária para mostra as condições
que os presos vivem e também estas denúncias que partiram do Ministério
Público. A gente está autorizado a entrar ou não?
João Carvalho
Coutinho Junior, superintendente de segurança penitenciária: A questão
da parte da segurança, quem avalia, é o superintendente de segurança.
Nós também temos uma portaria estadual que proíbe a entrada de qualquer
tipo de veiculação de imprensa para filmar dentro da unidade prisional.
Após
a gravação da entrevista, a assessoria de imprensa da secretaria mandou
uma nota informando que, até 2016, um novo presídio será construído
para substituir a Penitenciária de Aparecida de Goiânia.
Sobre o
Presídio Central, no Rio Grande do Sul, o secretário de Segurança
Pública do Rio Grande do Sul, Aírton Michels, reconhece as mordomias:
“Não deve, não pode, mas o resultado, a consequência de eliminar alguns
privilégios, de algumas facções, pode ser uma tragédia”.
Segundo
ele, o estado deve desativar o presídio até o fim do ano. “Nós estamos
com mais de quatro mil vagas sendo geradas aqui no nosso sistema no
entorno de Porto Alegre para até o fim do ano começar a resolver esse
problema do presídio central”, disse o secretário.
A
fiscalização dos presídios brasileiros é também responsabilidade de um
departamento do Conselho Nacional de Justiça. Segundo o juiz presidente
do órgão, a lei não proíbe objetos, como televisores e geladeiras nas
celas, mas ele avalia que as regalias para chefes de facções fortalecem o
crime.
“Quando nós abandonamos o sistema prisional, o Estado
deixa de cumprir o seu papel, as facções assumem esse papel e, com isso,
elas fidelizam aquelas pessoas que não têm acesso, que depois vão ser
soldados dela fora do sistema prisional”, afirma o presidente do
Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Penitenciário,
Douglas Martins.
Já churrascos, festas e acesso a celulares são proibidos. “É absolutamente ilegal e inadequado”, ressalta Douglas Martins.
“É
o temor de parte do Estado, da administração, de que se tenha uma
rebelião por semana”, diz o secretário de Segurança Pública do Rio
Grande do Sul, Aírton Michels.
“Não se combate facção com arma,
com escudo, com gás. Combate-se facção assegurando direitos. Os
presídios que têm isso funcionando não têm facção”, garante Sidnei
Brzuska, juiz da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre.