'Influenciadores mirins' tentam atrair outras crianças e adolescentes para um 'trabalho' supostamente rentável de participação nas vendas de cursos dentro da Kiwify e da Cakto. Especialistas veem indícios de trabalho infantil e exploração de imagem.
"Qual faculdade você pensa em fazer no futuro? Faculdade? Eu já ganho mais que 5 médicos no mês".
"Não me garanto em muita coisa, mas coloca um celular na minha mão pra ver se eu não faço R$ 50 mil no mês".
Frases como essas são ditas por adolescentes em vídeos publicados em contas com milhares de seguidores no Instagram e no TikTok. O g1 encontrou ao menos 33 perfis com esse tipo de conteúdo nas duas redes e monitorou essas contas nos últimos três meses.
Foram encontradas contas de pessoas que vivem em São Paulo, no Paraná e no Pará.
O conteúdo delas se resume a postagens que minimizam a importância do estudo e onde os "influencers mirins" vendem a ideia de um trabalho fácil, mostram maços de dinheiro, citam altas cifras de faturamento na bio, mas não revelam a fonte da suposta riqueza.
Eles pedem que os interessados em saber a "receita" do sucesso mandem uma DM (mensagem privada) ou acessem um link. Ali é revelado que o caminho para "ter" uma vida como a deles começa por comprar um curso hospedado nas plataformas de marketing de afiliados Kiwify e Cakto, amplamente divulgadas pelos adolescentes.
O que é marketing de afiliados: é uma estratégia de vendas em que uma empresa ou pessoa (também conhecida como infoprodutor) cria e disponibiliza seu curso ou produto em plataformas dedicadas para isso. Outras pessoas, então, divulgam esses conteúdos com links exclusivos e ganham uma porcentagem em cima da venda delas.
Os cursos, que prometem ensinar a ganhar dinheiro com a participação em vendas desses mesmos cursos, têm nomes chamativos como "O Tesouro do Tráfego Orgânico" e "Acelerador de resultados".
Eles são ministrados por outras pessoas que não os influencers. Por exemplo, no curso adquirido pelo g1, o irmão de uma menina que ostenta nas redes é quem dá as aulas.
Os conteúdos custam entre R$ 10 e R$ 200. Com isso, é necessário vender de 250 a 5 mil cursos para obter um faturamento de R$ 50 mil.
A pedido do g1, advogados especializados em direito da criança e do adolescente analisaram as postagens e disseram que podem ser casos de trabalho infantil on-line (veja o que dizem as regras abaixo).
Os adolescentes podem estar sendo usados por indivíduos mal-intencionados para praticar fraude (estelionato), avalia Kelli Angelini, advogada especialista em educação digital e autora do livro "Segredos da internet que crianças e adolescentes ainda são sabem".
A legislação brasileira define o crime de estelionato (Art. 171) como a tentativa de "obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento".
Neste caso, os menores podem estar sendo usados para vender cursos que prometem alto retorno, o que, na realidade, pode não se concretizar.
"É um caso gravíssimo porque as crianças que divulgam e as que assistem a isso são as verdadeiras vítimas. E o mais preocupante é como isso vem influenciando outras crianças a desvalorizar os estudos", diz Denise Auad, da comissão dos direitos da criança e do adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB SP).
O g1 procurou a Promotoria da Infância e Juventude do Ministério Público de São Paulo, o Ministério Público do Trabalho e o Ministério do Trabalho e Emprego, que informaram ter repassado o caso para os setores responsáveis.
As plataformas Kiwify e a Cakto, as mais divulgadas pelos "influencers mirins", dizem não ter relação entre si.
No site Reclame Aqui, existem vários relatos citando a Kiwify e a Cakto feitos por clientes que não conseguem cancelar a compra de serviços oferecidos. Isso porque eles não conseguem encontrar os canais oficiais de atendimento ou porque os responsáveis não respondem.
Ao serem procuradas pelo g1 para falar sobre os perfis dos adolescentes que as divulgam, ambas as empresas informaram que menores de idade não estão autorizados a usar seus serviços (leia os comunicados na íntegra, ao final da reportagem).
Apesar disso, adolescentes exibem em vídeos placas comemorativas enviadas pelas plataformas para quem atinge um marco nas vendas, geralmente R$ 100 mil.
Dois deles mostraram, além das placas, cestas da Kiwify e da Cakto que incluem um espumante, bebida alcoólica cujo consumo é proibido para menores de 18 anos no Brasil. Alguns também se filmaram em eventos da Kiwify.
Pessoas ligadas aos cursos afirmaram ao g1, em condição de anonimato, que a regra da maioridade é burlada porque os registros nessas plataformas são feitos com os dados dos responsáveis pela criança ou adolescente que divulga os cursos.
No YouTube, é possível encontrar alguns vídeos que ensinam como burlar as regras da Kiwify e criar uma conta para menores de idade. O g1 procurou a plataforma de vídeos para apresentar esses casos, mas não obteve retorno até a última atualização desta reportagem.
➡️ Abaixo, você verá:
Quem são os influencers que ostentam
A tática de posts provocativos e bebida como 'prêmio'
O que tem nos cursos
As regras de trabalho e o que chama a atenção de advogados
Quem são os influencers que ostentam
Apesar de serem desinibidas para falar sobre uma suposta vida de luxo, as crianças revelam poucas informações pessoais. Não falam as idades, nem a cidade ou estado onde vivem.
Os perfis costumam se seguir, o que indica que os envolvidos se conhecem, ao menos no ambiente virtual.
As informações disponíveis nas contas seguem a mesma tática dos vídeos: na bio, elas citam o suposto faturamento do influencer e incitam os seguidores a procurá-las se quiserem ter a mesma vida.
Em alguns poucos vídeos, crianças e adolescentes dizem estar com o pai ou a mãe e até presenteiam familiares. Nas filmagens, os supostos responsáveis sempre demonstram surpresa com o trabalho altamente rentável do filho.
O g1 localizou os pais de uma menina de Minas Gerais que divulga esses cursos. No Instagram, ela tem mais de 230 mil seguidores e os vídeos publicados contam com milhares de visualizações.
O pai dela inicialmente demonstrou interesse em dar entrevista, mas logo parou de responder aos contatos.
Dias depois, também por mensagens, a mãe confirmou que a filha tem 13 anos e considera que aquilo é um trabalho, o que pode ser indício de trabalho infantil, analisa Denise Auad, da comissão dos direitos da criança e do adolescente da OAB SP.
A mãe disse ainda que a menina "tira um bom dinheiro no digital", sem informar valores. E que os pais preferem deixar o montante guardado, para que a filha administre melhor, no futuro.
Não foi possível saber se a adolescente tem autorização judicial para divulgar esses conteúdos (entenda as regras ao fim da reportagem).
Durante vários dias, o g1 tentou marcar uma entrevista com a mãe. Mas, num último contato, ela disse que conversou com o marido e eles decidiram que não queriam mais falar, para "não expor muito a imagem da filha".
Não é possível saber a idade exata das demais crianças e adolescentes que aparecem nos vídeos. Também é difícil conseguir localizar os responsáveis, ainda que o Instagram afirme em sua política de uso que contas de menores de 13 anos precisam informar na bio que aquele perfil é gerenciado pelo pai, mãe ou responsável. O TikTok não tem essa exigência.
"As próprias redes sociais admitem que seus serviços não são voltados para crianças, mas, ao mesmo tempo, elas não conseguem garantir que esse público não esteja ali", diz Isabella Henriques, diretora-executiva do Instituto Alana (ONG voltada à proteção dos direitos das crianças) e presidente da comissão de defesa dos direitos da criança e do adolescente da OAB SP.
A tática de posts provocativos e bebida como 'prêmio'
Para João Francisco Coelho, advogado do programa Criança e Consumo do Instituto Alana, existe um "modus operandi" muito claro e bem delimitado quanto ao tipo de conteúdo que vai ser publicado por essas crianças e a linguagem que vai ser utilizada.
Por Darlan Helder, g1 — São Paulo
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