Quadros graves de desnutrição e óbitos marcam a crise humanitária encontrada nas comunidades indígenas que fazem parte da Reserva Yanomami.
Embora os yanomami tenham vasto conhecimento botânico e historicamente se sustentem pela coleta de alimentos no solo, além de pesca e caça, sua sobrevivência vem sendo continuamente ameaçada pela contaminação das águas e do solo pela prática do garimpo ilegal e a fuga da caça pela presença dos garimpeiros, problemas que se espalham pela área de mais de nove milhões de hectares localizada nas florestas e montanhas do norte do Brasil e sul da Venezuela.
Para reverter desnutrição, só 'dar comida' não basta
A situação é descrita por Marco Túlio, vice-presidente da SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade), como a pior que já viu em seus 20 anos de carreira. "É algo que eu e meus colegas vimos em fotos nos livros durante a faculdade de medicina, mas como algo que não acontecia mais no Brasil, somente em países longínquos e muito vulneráveis."
O cenário, aponta Marco Túlio, é resultado de uma desnutrição crônica, ou seja, muito tempo se passou sem que os integrantes da comunidade recebessem nutrição adequada.
Além da falta de alimentos, a região sofre com surtos de malária, doença infecciosa transmitida por mosquito contaminado por um protozoário.
Se não for tratada corretamente, a malária deixa causa vômitos e deixa o doente debilitado, com febre alta e dificuldade em manter ou ganhar peso.
"A desnutrição grave não é só a perda de peso acentuada, mas também representa a falta de vitaminas e nutrientes importantes, que, a depender da carência de cada organismo, pode causar problemas de pele, de visão e até neurológicos", explica.
Como o organismo passa a funcionar com uma carga metabólica mais baixa, desacostumado a receber uma quantidade normal de alimentos, dar comida demais para alguém desnutrido acaba sendo perigoso.
"O risco é acontecer a síndrome de realimentação, um conjunto de reações clinicas e metabólicas que podem ocorrer nos primeiros cinco a sete dias da reintrodução de comida e líquidos para alguém em estado grave de desnutrição, principal se é feita de forma rápida ou exagerada", Pedro Azollini, médico pediatra voluntário da Associação Médicos da Floresta com experiência em atendimento em comunidades yanomamis.
"Dentro das células temos minerais que ajudam a regular a atividade de músculos e nervos, como potássio, fosforo, B1, magnésio. Quando alimentamos muito rápido ou com muita comida, o nível desses minerais, que já é baixo, cai ainda mais, provocando um efeito reverso do desejado. Arritmias, fraqueza muscular, falência cardíaca, convulsão e coma são algumas das consequências", aponta Azollini, que também atua no Instituto da Criança HCFMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).
Crianças yanomamiASSOCIAÇÃO MÉDICOS DA FLORESTAAlimentação deve ser reintroduzida gradualmente em casos de desnutrição grave
Reintrodução alimentar precisa ser feita com parcimônia
O protocolo para ajudar indígenas desnutridos durante as expedições, explica a pediatra Bruna Abilio, que também atua na Associação Médicos da Floresta, dependia do quadro de cada paciente.
"Para quem tinha uma condição mínima de comer por boca, indicávamos a realimentação por meio da UBS indígena. Pedíamos que a pessoa fosse até lá para receber a alimentação todos os dias, que era calculada por um profissional da saúde. Em geral, começa se ofertando uma quantidade menor de comida e vai aumentando o aporte calórico ao longo dos dias", afirma a médica, que é parte do corpo clínico do Hospital Israelita Albert Einstein.
A apuração do veículo jornalístico Sumauma aponta que unidades de saúde também ficaram sem alimentos adequados, chegando a oferecer apenas arroz, que tem poucos nutrientes, aos pacientes.
Já para os que apresentavam condições mais graves, como estado debilitado associado a infecções ou doenças, Abilio explica que era indicado o transporte para a capital de Roraima, Boa Vista, onde há hospitais com mais estrutura.
Pedro Azollini explica que, em quatro expedições para duas bases diferentes de comunidades yanomami, os voluntários observaram que o cenário de desnutrição era mais crítico em terras mais próximas à atividade de garimpo ilegal.
"Alguns conseguiam ter um consumo aceitável de carboidratos, como mandioca e banana, mas ainda faltava o aporte de proteínas vindo da caça ou da pesca. Outros, como as pessoas muito magras que vemos nas imagens, tinham déficit de ambos."
O tempo de reabilitação do organismo depende do quadro de cada pessoa.
"O tempo varia por idade e condições clínicas de cada pessoa - se há a necessidade de tratar infecções paralelas, provavelmente a recuperação será mais lenta. Em geral, a primeira semana é a mais sensível, com maior risco de síndrome de reabilitação. Em 10 a 15 dias, já é possível ver alguma melhora."
'A pior situação humanitária que já vi': os relatos de médico que foi atender os yanomami
Além da desnutrição: risco de sequelas e outras doenças e infecções
"Em nossa primeira expedição em março de 2022, já notamos um índice alto de desnutrição, principalmente infantil, e um agravo importante em idosos. Além disso, malária, verminoses e tungíase, conhecido como 'bicho de pé', são problemas de saúde graves para eles. A tungíase, especificamente, causa múltiplas lesões dolorosas, abre portas para outras infecções e faz com que alguns percam pedaços do pé, causando problema para caminhar e para manter seu potencial produtivo de caça e cuidados da roça", explica a pediatra Bruna Abilio.
pé de criança yanomami com feridas causadas pela tungíaseASSOCIAÇÃO MÉDICOS DA FLORESTAPé de criança yanomami com feridas causadas pela tungíase ('bicho de pé')
A médio e longo prazo, Abilio acrescenta também que as crianças que sofreram por desnutrição podem ter sequelas no crescimento e desenvolvimento cognitivo.
Situação da comunidade yanomami pede urgência
O cenário de crise humanitária ganhou mais notoriedade dentro do país nos noticiários dos últimos dias, mas a situação já era conhecida por voluntários como os médicos Pedro e Bruna e até por organizações de fora do país.
No dia 1º de julho de 2022, a Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu uma decisão em que exige uma resposta do Brasil para "proteger a vida, a integridade pessoal e a saúde dos membros dos povos indígenas yanomami, ye'kwana e munduruku".
A resposta só acontece agora, com 15 mil médicos cadastrados da Força Nacional do SUS se disponibilizando para oferecer ajuda nas comunidades yanomamis.
Marco Túlio, vice-presidente da SBMFC, é um dos voluntários que aguardam a chamada do Ministério da Saúde. Ele afirma que ainda não há um relatório divulgado sobre o número de pessoas com desnutrição ou outros quadros, bem como suas divisões por faixa etária e número da população geral.
"Acredito que o Ministério da Saúde está trabalhando nesse levantamento, e por ora temos uma resposta boa da comunidade médica. Este é um evento sentinela, algo que vai nos deixar mais atentos a populações mais vulneráveis, não só os indígenas, mas populações em situação de rua. Precisamos trazer saúde de forma mais equitativa para essas pessoas."
Sobre as possíveis soluções para o problema complexo das comunidades yanomamis, os médicos respondem que há necessidade de medidas de curto, médio e longo prazo.
"O primeiro passo é oferecer o que está faltando,
O protocolo para ajudar indígenas desnutridos durante as expedições, explica a pediatra Bruna Abilio, que também atua na Associação Médicos da Floresta, dependia do quadro de cada paciente.
"Para quem tinha uma condição mínima de comer por boca, indicávamos a realimentação por meio da UBS indígena. Pedíamos que a pessoa fosse até lá para receber a alimentação todos os dias, que era calculada por um profissional da saúde. Em geral, começa se ofertando uma quantidade menor de comida e vai aumentando o aporte calórico ao longo dos dias", afirma a médica, que é parte do corpo clínico do Hospital Israelita Albert Einstein.
A apuração do veículo jornalístico Sumauma aponta que unidades de saúde também ficaram sem alimentos adequados, chegando a oferecer apenas arroz, que tem poucos nutrientes, aos pacientes.
Já para os que apresentavam condições mais graves, como estado debilitado associado a infecções ou doenças, Abilio explica que era indicado o transporte para a capital de Roraima, Boa Vista, onde há hospitais com mais estrutura.
Pedro Azollini explica que, em quatro expedições para duas bases diferentes de comunidades yanomami, os voluntários observaram que o cenário de desnutrição era mais crítico em terras mais próximas à atividade de garimpo ilegal.
"Alguns conseguiam ter um consumo aceitável de carboidratos, como mandioca e banana, mas ainda faltava o aporte de proteínas vindo da caça ou da pesca. Outros, como as pessoas muito magras que vemos nas imagens, tinham déficit de ambos."
O tempo de reabilitação do organismo depende do quadro de cada pessoa.
"O tempo varia por idade e condições clínicas de cada pessoa - se há a necessidade de tratar infecções paralelas, provavelmente a recuperação será mais lenta. Em geral, a primeira semana é a mais sensível, com maior risco de síndrome de reabilitação. Em 10 a 15 dias, já é possível ver alguma melhora."
'A pior situação humanitária que já vi': os relatos de médico que foi atender os yanomami
Além da desnutrição: risco de sequelas e outras doenças e infecções
"Em nossa primeira expedição em março de 2022, já notamos um índice alto de desnutrição, principalmente infantil, e um agravo importante em idosos. Além disso, malária, verminoses e tungíase, conhecido como 'bicho de pé', são problemas de saúde graves para eles. A tungíase, especificamente, causa múltiplas lesões dolorosas, abre portas para outras infecções e faz com que alguns percam pedaços do pé, causando problema para caminhar e para manter seu potencial produtivo de caça e cuidados da roça", explica a pediatra Bruna Abilio.
A médio e longo prazo, Abilio acrescenta também que as crianças que sofreram por desnutrição podem ter sequelas no crescimento e desenvolvimento cognitivo.
Situação da comunidade yanomami pede urgência
O cenário de crise humanitária ganhou mais notoriedade dentro do país nos noticiários dos últimos dias, mas a situação já era conhecida por voluntários como os médicos Pedro e Bruna e até por organizações de fora do país.
No dia 1º de julho de 2022, a Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu uma decisão em que exige uma resposta do Brasil para "proteger a vida, a integridade pessoal e a saúde dos membros dos povos indígenas yanomami, ye'kwana e munduruku".
A resposta só acontece agora, com 15 mil médicos cadastrados da Força Nacional do SUS se disponibilizando para oferecer ajuda nas comunidades yanomamis.
Marco Túlio, vice-presidente da SBMFC, é um dos voluntários que aguardam a chamada do Ministério da Saúde. Ele afirma que ainda não há um relatório divulgado sobre o número de pessoas com desnutrição ou outros quadros, bem como suas divisões por faixa etária e número da população geral.
"Acredito que o Ministério da Saúde está trabalhando nesse levantamento, e por ora temos uma resposta boa da comunidade médica. Este é um evento sentinela, algo que vai nos deixar mais atentos a populações mais vulneráveis, não só os indígenas, mas populações em situação de rua. Precisamos trazer saúde de forma mais equitativa para essas pessoas."
Sobre as possíveis soluções para o problema complexo das comunidades yanomamis, os médicos respondem que há necessidade de medidas de curto, médio e longo prazo.
"O primeiro passo é oferecer o que está faltando, a suplementação de comida e tratamento adequado para cada quadro. Assim tiramos as pessoas do risco iminente de morte", diz Pedro Azollini.
"Mas ao médio e longo prazo precisamos de políticas públicas que foquem na autossuficiência desses povos, para que eles possam suprir suas necessidades de forma que não se crie dependência com não-indígenas, além do combate sério ao garimpo ilegal, que é a base do agravo desse cenário", complementa Bruna Abilio.
Cultura/ UOL
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