Arte: Comunicação/MPF
As instituições de Justiça que atuam no caso Samarco – Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública da União (DPU), Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais (DP/MG), Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo (DP/ES) e Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) – obtiveram decisão judicial que obriga a Fundação Renova e suas mantenedoras – Vale, BHP Billiton e Samarco – a realizarem contrapropaganda do material publicitário veiculado há alguns anos em diversos meios de comunicação a respeito do desastre resultante do rompimento da barragem de Fundão, ocorrido em 2015, em Mariana (MG).
Ação civil pública (nº 1023835-46.2021.4.01.3800) ajuizada em 2021 demonstrou que a Renova estava veiculando material publicitário que, propositadamente, continha “informações imprecisas, dúbias, incompletas ou equivocadas” a respeito de assuntos fundamentais para a população, como toxicidade dos rejeitos, qualidade do ambiente aquático, recuperação de nascentes e bioengenharia, recuperação econômica, indenização e reassentamento.
No período de 2018 a 2021, a fundação havia empregado R$ 28,1 milhões em publicidade, sendo que, em pouco mais de um mês (6 de setembro a 11 de outubro de 2020), foram gastos R$ 17,4 milhões com um único contrato de publicidade. Ao todo, foram 861 inserções em TVs e 756 em emissoras de rádio, sem incluir o material divulgado em veículos impressos e portais de notícias.
Para o Juízo da 4ª Vara Federal Cível e Agrária de Belo Horizonte, após analisar detidamente todos os tópicos tratados pelas propagandas, “É evidente o desvio de finalidade da fundação que se prestou a uma campanha publicitária e de marketing para criação de uma narrativa fantasiosa a favor da própria fundação. A situação, além de demonstrar o desrespeito da Renova ao seu próprio estatuto, demonstra claramente uma falta de respeito em relação às vítimas e à sociedade brasileira”.
Além disso, segundo ele, “Esta tentativa de controle da narrativa para criar uma campanha orquestrada de desinformação não é apenas imoral, como ilegal”.
Na sentença, além de determinar que a entidade produza novas peças publicitárias sobre os mesmos assuntos tratados nas propagandas originais, mas corrigindo as inverdades, distorções e omissões, o magistrado também condenou a Renova ao pagamento de indenização por danos materiais e morais. A quantia a ser paga soma R$ 56.302.564,60, em valor a ser atualizado e corrigido monetariamente por ocasião de sua quitação.
Desvio de finalidade e autopromoção – As propagandas contestadas pelas instituições de Justiça trataram de toxicidade dos resíduos, qualidade da água, pagamento de indenizações, obras de infraestrutura e reassentamento, municípios abrangidos e repasses efetuados, recuperação econômica, povos tradicionais, patrimônio histórico, cultural e afetivo, projetos sociais e de proteção social, estudos de saúde e Escola Municipal Gustavo Capanema.
Em todas elas, à exceção da propaganda sobre a qualidade da água, o Juízo reconheceu a procedência das alegações quanto ao conteúdo direcionado para minimizar, omitir e até contradizer a realidade dos fatos, numa “verdadeira campanha de desinformação, com o intuito de minimizar o impacto do rompimento da barragem de Mariana”.
Assim é que, ao tratar da toxicidade dos resíduos e dos estudos de saúde, as peças publicitárias produzidas pela Renova ignoraram propositadamente estudos contratados pelo MPF que apontaram a contaminação por metais em tecido muscular de exemplares de pescado em toda a área atingida pelo desastre, assim como a existência de substâncias químicas que poderiam causar danos à saúde humana.
Em outros temas, como pagamento de indenizações, municípios atingidos e reassentamento, os números contradisseram os fatos ou induziram a equívocos: o número divulgado de indenizações pagas incluiu indevidamente valores pagos a título de auxílio financeiro, o qual conforme reiterada jurisprudência, não possui caráter de indenização; o número de municípios (39) informado na propaganda era inferior ao número (45) reconhecido pelo Comitê Interfederativo; e a peça publicitária sobre obras de infraestrutura e reassentamento omitia a insatisfação, inadequação e ineficiência do programa de reassentamento das famílias de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira.
Em 2021, a fundação somente havia construído cinco casas das 235 previstas e o último prazo para entrega das obras estabelecido pela Justiça (27 de fevereiro de 2021) não fora cumprido, com apenas 1,7% das famílias reassentadas. A propaganda também não mostrava que, das 239 famílias envolvidas no reassentamento coletivo de Bento Rodrigues, 58 registravam insatisfação com o lote ou projeto, novos núcleos cedidos, inquilinos ou herdeiros, divergências de área, entre outros motivos.
Considerando que o investimento da Renova em publicidade, no mês de propositura da ação, tinha sido de R$ 17 milhões, quantia muito superior aos recursos empregados em pelo menos 13 programas de reparação, a sentença lembra que, se “um dos símbolos emblemáticos do desastre foram as casas destruídas pela lama, tem-se que, se for considerado que nos Custos Unitários Básicos de Construção (CUB/m²), o valor do metro quadrado padrão normal residencial (R-1) é de R$ 2.027,20, poderiam ser construídas com o valor empregado em propaganda nada menos que 146 casas de dois dormitórios ou 80 casas de três dormitórios para os atingidos que há cinco anos esperam por um novo lar”.
Má-fé – O magistrado também considerou que a entidade, ao se defender das alegações dos ministérios públicos e defensorias, agiu de má-fé, “sem qualquer pudor ou autocrítica, ao defender teses em juízo baseadas em informações falsas”.
“Ademais, é impressionante a capacidade da Fundação de responsabilizar terceiros por atrasos e outras circunstâncias. Não há autocrítica ou humildade para admitir que a fundação erra. (…)
Em sua litigância de má-fé, a fundação pinta um quadro em que se vitimiza, na medida que suas ações são obstadas por fatores externos imprevisíveis ou falta de colaboração de terceiros. É óbvio que um processo de reconstrução do maior desastre ambiental do país será marcado por contratempos, dificuldades e eventualmente atrasos. No entanto, falta à Renova em sua atuação administrativa e em suas manifestações judiciais bom senso. A transparência envolve o reconhecimento de próprias falhas e medidas para mitigá-las. A contestação apresentada é um triste retratado de uma tentativa desesperada e defensiva de atribuir a culpa a terceiros ou outros eventos e de como a máquina administrativa da Renova está mais preocupada com a autodefesa e autopromoção do que com qualquer compromisso real e efetivo com a reparação”, afirma a sentença.
A Justiça Federal considera que as propagandas violaram princípios do Direito Ambiental, em especial os de prevenção e precaução, como também as cláusulas 07 e 12 do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta – acordo assinado em 2016, no bojo do qual foi criada a Fundação Renova –, que obrigam à veiculação de informações, no processo de reparação, de forma transparente, clara e objetiva. A publicidade também incorreu em desvio de finalidade, “com nítido dolo de trazer desinformação e afastar as vítimas dos seus direitos”.
Por fim, a sentença afirma que “É fato inédito no contexto brasileiro que uma fundação assistencial sem fins lucrativos, de intuito reparatório e compensatório, tenha recursos desse montante para propaganda e promoção da imagem de suas mantenedoras. Mais absurdo é constatar que os recursos foram disponibilizados por suas mantenedoras apenas para veiculação de informações unilaterais, incompletas, descontextualizadas e sem a adequada perspectiva dos atingidos, que são a sua finalidade estatutária”.
Nova violência – Para o Juízo Federal, o dano moral coletivo é evidente e decorre da ofensa aos direitos das vítimas do desastre e de toda sociedade.
Ao analisar uma das peças publicitárias, ele afirma que “Ainda que seja legítimo o eventual sentimento de gratidão de uma vítima individualmente contemplada por uma ação de reparação, a tentativa de romantizar a reparação, sem levar em conta o trauma do passado, configura uma nova violência à memória das vítimas. A própria romantização da peça publicitária foge das disposições do TTAC que exigem respeito e sobriedade em relação à vítima. E não há finalidade institucional nenhuma que abarque a autopromoção em uma campanha de marketing tão desrespeitosa. Permitir a veiculação desta publicidade é permitir a continuidade de ofensa aos direitos das vítimas, com a minimização do seu sofrimento e criação de uma narrativa fantasiosa”.
“Além de não reconhecerem a responsabilidade pelo desastre, as ações de publicidade da Renova minimizam o próprio impacto da tragédia, na contramão do entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, já que a Corte entende que atos de reconhecimento de responsabilidade são uma das medidas de reparação”, conclui a sentença.
Assessoria de Comunicação Social
Ministério Público Federal em Minas Gerais
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