Para um leigo, é difícil assimilar que aquela impressora está criando uma estrutura com fibras e gordura. Lentamente, a máquina constrói a forma de um alimento rico em proteína e com células vivas extraídas de animais, sem precisar de abates ou maus-tratos. No computador ao lado, os cientistas criam um formato de hambúrguer num aplicativo gráfico, escolhendo também as vitaminas, calorias, nutrientes e se vai ter gosto de picanha ou maminha. A bioimpressora faz o resto, montando a carne celular neste açougue de laboratório. Parece a narração de um filme de ficção científica, mas estão imprimindo carne em Salvador, literalmente.
Enquanto o soteropolitano brinca de tomar susto ao se deparar com o preço da picanha no mercado, cientistas e pesquisadores do Centro Tecnológico e Universitário Senai Cimatec, em Piatã, entraram na corrida pela criação da carne celular. Desde dezembro, o Senai adquiriu a bioimpressora, um derivado da impressora 3D, capaz de imprimir alimentos e tecidos de origem animal. Todos os dias um pedacinho de carne está sendo produzido e testado, até chegar na estrutura igual ao da carne convencional, com formato, tabela nutricional e cor. Só então poderemos provar o primeiro bife de laboratório feito na Bahia. A previsão inicial é 2023.
Afinal, que carne é esta e como é possível fazer este alimento animal sem matar o boi? A resposta está na estrutura celular, o ator principal para este milagre da multiplicação. Os cientistas utilizam células-tronco para iniciar todo o processo. Ela é retirada do cordão umbilical ou até mesmo da pele da vaquinha.
“Também é possível a retirada pela medula óssea, mas a gente evita, pois é muito invasivo para o animal. Não é nossa intenção. É possível tirar de pele, mas precisamos transformar estas células novamente em tronco. Por quê? Para que estas células cresçam em grandes quantidades, precisamos de biorreatores e a célula-tronco é uma das que crescem bem neles. Gordura, músculo e pele são células acostumadas com o corpo da gente, grudadinhas, muito específicas, difícil de manipular”, explica Jaqueline Vieira, doutoranda
em engenharia tecidual pela Fiocruz e integrante da equipe que está imprimindo as carnes em Piatã.
Cientistas ou açougueiros? Pesquisadores do Senai Cimatec estão revolucionando a ciência na Bahia (Foto: Marina Silva/CORREIO) |
Complicou? Vamos tentar traduzir o cientifiquês. Estes organismos vivos são ‘virgens’, sem formação, uma matriz das células que temos e serão responsáveis pelo formato do nosso corpo, como pele e coração, por exemplo. Elas também reconstroem nosso tecido quando nos cortamos. De forma bem simples, uma célula-tronco se transforma em tudo que somos, por isso ela se tornou providencial para customizar todo material biológico sintético, como a carne e até na construção de órgãos em laboratório para futuros transplantes na medicina. Nós, portanto, temos um molde natural que faz estas células-tronco se formarem. No caso da carne de laboratório, a bioimpressora fará este papel, inclusive colocando aquela capinha de gordura e até um ossinho na costelinha. Ossinho comestível, inclusive.
Antes, porém, se faz biópsia no animal, sem dor. Este material repleto de células-tronco vai para um biorreator, onde se multiplicarão. Por analogia, este tanque é a fazendinha onde o gado [no nosso caso, a célula] come no pasto e cresce. Um pedacinho tirado do boi pode se multiplicar inúmeras vezes, sem a necessidade de outras intervenções no animal. “Quando tivermos uma quantidade suficiente para imprimir, a gente diferencia elas no tipo de tecido que a gente quer. Nessa hora que escolhemos se será um tecido muscular, mais proteico, ou gordura, o que geralmente dá a textura [e gosto] da picanha”, conta Jaqueline.
Após a criação das células, começa a brincadeira. Com ajuda de um hidrogel, estas células ficam líquidas e transparentes. É possível reparar que o pedaço de carne impressa no Senai Cimatec parece mais com um docinho de gelatina do que um bife, bem clarinho e transparente. É justamente a fase atual da pesquisa: equilibrar todos os ingredientes até chegar ao denominador perfeito, visualmente comestível. A carne que conhecemos tem aquela cor graças ao sangue. No pedaço sintético, os cientistas utilizam outros materiais naturais, como corantes de beterraba ou cenoura, até conseguir a cor perfeita. Estes corantes também são produzidos no Senai, no laboratório vizinho
Com a inclusão de vitaminas e proteínas, o pedaço perde a transparência e escurece até chegar no ponto certo, mas sem aquele sangue derramado. Já a combinação entre fibras e gordura determinará se será uma picanha ou maminha. Isso tudo é feito no computador, pelos próprios pesquisadores. Depois, ‘basta’ colocar na seringa o líquido com células vivas, corantes e proteínas na impressora. Um mini-hambúrguer leva cerca de uma hora até ficar pronto. Como a bioimpressora é voltada para laboratório, ela faz apenas pequenos pedaços, de caráter experimental. Tudo com células vivas, inclusive após impressão concluída. Depois deste processo, finalmente dá para fritar com manteiga de garrafa e consumir com uma farofinha d’água, né? Não, senhor.
O que a impressora faz é transformar estas células em tecidos vivos. Como um músculo do nosso corpo, cheio de organismos que formam nossos órgãos. Depois de impressas, as carnes do Senai Cimatec vão para um compartimento conhecido como meio de cultura, onde as células permanecem vivas, adquirindo todas as proteínas e vitaminas suficientes, mas de forma artificial. No nosso corpo, o sangue faria este papel. Só então chegaremos na fase mais gostosa: experimentá-las.
Foto: Marina Silva/CORREIO |
“Estamos trabalhando o tempo todo com organismos vivos. Daquelas células que vão para impressão, conseguimos que 70% fiquem vivas para adquirirem todo o aspecto de carne. Se estas células não permanecerem vivas, a carne fica podre”, explica Josiane Dantas, doutora e professora do Senai Cimatec, com pós-doutorado em Nanotecnologia e Materiais Bio-inspirados, pela Universidade da Califórnia, Estados Unidos. Josiane diz que esta possibilidade pode mudar nossa forma de se alimentar, abrindo possibilidades para quem nunca comeu carne.
“É tudo muito novo. Na cabeça das pessoas, o normal é a carne sair do animal. Hoje temos outras opções de consumo, como os veganos. Para uma determinada classe da sociedade que já não faz uso de animais, acaba sendo um poder de convencimento [para o consumo]. Quando passar a ter isso disponível no supermercado, você vai poder escolher entre a origem diretamente do animal ou celular”, completa Josiane
Veganos
Seria, então, o fim do vegano? Vamos pensar que todo este experimento dê certo e se torne comum e massificado para o consumo no mundo. Todos poderão comer carne impressa em grande escala. Ora, convenhamos que certamente diminuirá a necessidade de abate de animais na forma convencional, correto? Chega de maltratar os bichinhos. Logo, também não teremos tantos pastos e diminuiremos o desmatamento. Com menos vacas, menos metano no ar, além do Co2. Um cenário perfeito para um vegano finalmente se esbaldar num churrasco, né? Não é bem assim.
“O veganismo não se trata de um plano alimentar. É, de fato, uma filosofia de vida. É a eliminação do uso de produtos de origem animal. Se pensarmos que temos três pilares, praticamente eliminamos esta possibilidade [do vegano consumir a carne celular]. No primeiro, temos o respeito aos animais. O segundo, a sustentabilidade. Nestes dois casos, ok, a carne celular sustenta estes pilares. Mas também prezamos pela saúde. Neste terceiro pilar, não estamos contemplados. Não muda em nada. O corpo humano passa dias, a depender da carne, para digerir integralmente o ‘alimento’”, explica o jornalista, poeta e vegano de carteirinha, Thiago Nascimento. Ele é ativista e tem até tatuagem com a palavra “vegan”.
Mesmo assim, Thiago enxerga com bons olhos este avanço científico. “De uma certa forma, eu celebro que haja este avanço, pois contribui com a redução da crueldade com animais e com a sustentabilidade planetária, reduzindo os impactos da desenfreada e agressiva indústria pecuarista”, completa. É um assunto tão novo que foi difícil até conversarmos com um nutricionista especializado, pois ainda não existem estudos sobre esta carne celular. É compreensível.
Vai uma carninha de laboratório? (Foto: Marina Silva/CORREIO) |
“Produzir células e fazer material capaz de gerar algo semelhante à carne é um desafio complexo e muito inicial, uma vez que ainda não existem estudos para comprovar a qualidade nutricional deste produto e nem a viabilidade da produção, nem os efeitos na saúde do consumidor. Sem dúvidas, depois que mais testes forem realizados, e a ciência comprovar o benefício da técnica, o meio ambiente agradecerá tal feito”, disse a nutricionista Thais Majdalane, MBA em Gestão em Negócios em Alimentação e professora do Centro Universitário UniFTC Salvador.
Nas prateleiras do mercado, já existe uma opção de carne diferente, também oriunda dos tubos de ensaio: a carne vegetal. Contudo, apesar de ser um alimento sintetizado, este tipo de ‘carne’ não passa de uma mistura 100% vegetal, sem nenhuma relação animal. O gosto também não é idêntico ao da carne, ao contrário da versão celular, que pretende ser igual, apenas com a maneira de produção diferente.
Outro aspecto importante para a massificação da carne de laboratório é a possibilidade de alimentar um mundo cada dia mais lotado de gente. Até 2050, segundo a ONU, seremos 10 bilhões de bocas para alimentar. Se já é difícil agora, com 193 milhões de pessoas passando fome (segundo recente publicação da ONU), imagine no futuro. “É preciso procurar novas maneiras proteicas para alimentar o mundo sem degradar o meio ambiente. A ciência está buscando isso e uma alternativa é justamente esta célula de proteína cultivada. Nós também estamos nesta corrida”, disse a doutora e gerente da área de alimentos do Senai Cimatec, Tatiana Nery.
Para conseguir contemplar esta melhoria no planeta, a carne celular precisa, além de ser gostosa e benéfica, também acessível para venda em grande escala. A pesquisa ainda é cara em todo mundo. O primeiro bife de laboratório foi feito em 2013, pela pela Universidade de Maastricht, na Holanda. O pedacinho custou, na época, quase R$ 2 milhões. Contudo, apesar de ainda estar nascendo aqui na Bahia, a corrida para ter a carne celular no mercado já começou e o produto está mais barato de fazer. Mais ou menos. Um quilo de carne celular hoje é produzido em laboratório por R$ 5.378,50, na cotação atual do dólar. Vale lembrar que ainda não existe escala industrial na produção do alimento.
Mas este valor não desanima investidores. Com a tecnologia consolidada, é questão de tempo para baratear todo o ciclo de produção que citamos no início da matéria, mas em escala industrial. Em Singapura já existe uma lei reguladora que libera a venda do produto, o primeiro no mundo inclusive a comercializar para o público, em 2020. Foram nuggets de frango celular e cerca de mil pessoas consumiram. O pedacinho custou 50 dólares.
“Qual é o nosso desafio? Fazer com que esta tecnologia, hoje em laboratório, seja viável para ser implementada na indústria e no mercado. É isto que nossos empresários querem saber, em curto prazo. Somos um dos líderes na exportação de carne convencional e queremos também entrar no mercado desta forma alternativa de proteína”, explica Tatiana Nery
“O Brasil não tem uma legislação que permita o consumo desta carne. Se fizermos aqui no Senai e colocar para vender na Rede Mix, a Anvisa pega. Então, é um trabalho múltiplo, de pesquisadores de diversas áreas e pessoas buscando a viabilidade de tudo. Precisamos estudar impactos sanitários para que se tenha uma agência reguladora, como existe em Singapura. Já tem gente da indústria correndo atrás”, completa.
As pesquisadoras Jaqueline, Josiane e Tatiana |
Nos Estados Unidos, a produtora de carne Good Meat anunciou em maio deste ano que sua pesquisa está perto de sair do laboratório e cair no mundo até 2024. A empresa assinou convênios para a construção de biorreatores e bioimpressoras capazes de produzir em escala industrial. Eles irão produzir frango e carne e pretendem, já em 2025, produzir 13,6 milhões de quilos de carne celular por ano. Para isso, políticos americanos também já mexem seus pauzinhos para regularizar a produção. Vale lembrar que esta técnica não está resumida apenas a carne bovina. Dá também para produzir com peixe, frango e porco, por exemplo.
Segundo a FAIRR Initiative, um grupo de investidores globais, em 2021 foram investidos 506 milhões de dólares em todo mundo na busca da carne celular perfeita e acessível para o consumo. Para se ter uma ideia, em 2020 foram ‘apenas’ 366 milhões injetados na pesquisa. A tendência é que o investimento cresça mais 40% este ano. Vale lembrar que as pesquisas realizadas em Salvador também servem como suporte para ajudar as empresas brasileiras nesta corrida pela carne de laboratório nas prateleiras.
O Senai Cimatec ainda não tem incentivo industrial, apesar de estar prospectando novos parceiros. A sede soteropolitana entrou nesta corrida sob olhar acadêmico, com o propósito de mostrar opções viáveis para as indústrias brasileiras entrarem na briga desta tendência mundial. A pesquisa tem recurso próprio e apenas a bioimpressora foi adquirida com recurso da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), empresa pública federal. Uma impressora como esta custa, em média, 20 mil dólares. O Centro Universitário de Salvador pretende ampliar os horizontes nesta linha. Para quem quer seguir neste ramo, em outubro começa uma especialização de Alimentos Funcionais. Quanto mais gente pesquisando, melhor.
Mas a pesquisa não se limita ao Senai Cimatec. A multinacional brasileira JBS, líder no mercado alimentício no país, adquiriu, em 2021, a empresa espanhola BioTech Foods, justamente com a intenção de entrar nesta corrida. Até o final deste ano, pretende inaugurar um centro de pesquisa em Santa Catarina para que, até 2024, possa produzir a carne celular em grande escala. O investimento ultrapassa a casa de R$ 1 bilhão.
“Saímos um pouco atrás dos Estados Unidos, mas estamos avançando. Nosso objetivo é entregar um produto pronto para consumo, aqui no Senai Cimatec, em um ou dois anos. Antes disso, vamos convidar o CORREIO para comer nossa carne celular. E nem precisa trazer as bebidas, pois aqui também produzimos vinhos e cervejas”, assegura Tatiana Nery. Deu água na boca.
Como se faz carne celular
Coleta
É feita uma biópsia no animal, extraindo células-troncos de alguma parte, geralmente do cordão umbilical, sem que o boi sofra. É possível retirar de outros animais.
Fazendinha
Após extrair a célula-tronco, ela vai para um tanque rico em nutrientes, conhecido como biorreator. Lá ele vai se multiplicar até ficar em quantidade suficiente para criar fibras, gorduras e outros tecidos vivos.
Manda imprimir!
Estas células serão transformadas em hidrogéis. os cientistas fazem o desenho da carne e equilibram fibras e gorduras que darão o gosto e a textura que determinam se o pedaço será de uma picanha ou de uma maminha. Depois, manda imprimir na bioimpressora.
Maturação
Feita a carne, as células continuam vivas e irão para outra fase, que é do meio de cultura e maturação, onde ganharão corpo, proteínas e nutrientes. Temos um bife de laboratório pronto para fazer um churrasco.
Fonte: Primeiro Jornal
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