BRASÍLIA — Gabriel tem 12 anos e precisa de um coração novo. Doadores para crianças na fila de espera são raros. Doações de coração, então, são raríssimas. O órgão é o que tem o menor tempo de isquemia — o menor período em que pode ficar sem irrigação sanguínea nenhuma: quatro horas, o prazo completo para trocar de peito. No primeiro dia do ano, o menino de Brasília teve uma oportunidade real de transplante. O coração novo, porém, não chegou ao Planalto Central.
O órgão surgiu em Pouso Alegre (MG), a menos de mil quilômetros de Brasília, e a oferta foi oficialmente feita pela Central Nacional de Transplantes à central de regulação no Distrito Federal. A equipe que cuida de Gabriel nem embarcou: faltou um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) para buscar o coração em Minas.
Pouco mais de uma semana depois, Gabriel continua na lista de espera por um coração. Em Brasília, são duas crianças na fila: Gabriel e Laura, uma bebê de nove meses. A perda da oportunidade, por falta de transporte, foi considerada grave pela equipe médica, gerou mobilização e revolta de profissionais e vem sendo cercada de sigilo.
O sistema de transplante de órgãos, quase que inteiramente feito por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), é considerado eficiente. Mas não está imune a falhas, em especial o transporte interestadual de órgãos. O GLOBO apurou que o caso de Gabriel não é o único. Em Brasília, ao longo de 2015, houve outras recusas, em especial de coração, por falta de uma aeronave da FAB ou comercial.
Gabriel é acompanhado no Instituto de Cardiologia do DF, o único em Brasília a fazer transplante de coração. O instituto não divulgou boletins médicos sobre a saúde do garoto e não permitiu o acesso à família. O hospital confirmou que, no dia 1º, a equipe médica não embarcou para Minas para fazer a avaliação do coração por falta de transporte.
CONDIÇÕES PARA TRANSPLANTE ERAM FAVORÁVEIS
A Central Nacional de Transplantes fez a oferta do coração a diferentes centrais locais, entre elas a do DF. No e-mail disparado às centrais já foi informada a falta de logística para transportar o órgão. Até o primeiro semestre de 2014, cabia aos estados organizar essa logística. Agora, a Central Nacional cuida de horários, dias e disponibilidade de voos.
As condições eram favoráveis para o coração de Minas bater no peito de Gabriel. Pouso Alegre, a menos de mil quilômetros de Brasília, tem aeroporto. A Central Nacional de Transplantes não fez objeção à qualidade do órgão, apenas à falta de disponibilidade de aeronaves. E, naquele dia 1º, aviões da FAB não decolaram para transportar autoridades.
Em 30 de dezembro, uma aeronave da FAB decolou de Brasília a São Paulo para transportar o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski. No dia anterior, a FAB transportou de Brasília para o Rio o presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Não houve voos nos dias 2 e 3.
Aeronaves da FAB já percorreram distâncias maiores para buscar um coração. Foi assim em 4 de agosto de 2015, quando um morador de Brasília recebeu um órgão de Jaraguá do Sul (SC), a 1,5 mil quilômetros. A FAB fez mais dois transportes de coração para Brasília em 2015. O segundo mais distante foi buscado em Arapongas (PR), a 1,1 mil quilômetros. Ministério da Saúde e FAB assinaram um acordo de cooperação técnica no fim de 2013 para priorizar o transporte de órgãos e tecidos.
— Já esbarrei em situações como essa. Quando vemos que não há transporte, já paramos o procedimento — afirma um médico que atua com transplantados de coração na capital.
O presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, Roberto Manfro, elogia o sistema de transplantes e diz que situações como a envolvendo o coração em Minas não são frequentes:
— Não existe sistema que funciona 100% o tempo todo. A falta de transporte ocorre em situações de estresse do sistema. Nessa área, a taxa de sucesso é alta e a atuação do poder público é elogiável. Agora, cada órgão que deixa de ser transplantado, uma pessoa deixa de ser beneficiada.
O GLOBO perguntou à FAB e ao Ministério da Saúde se a falta de disponibilidade de uma aeronave para buscar o coração em Minas estava relacionada a cortes de despesas em razão do ajuste fiscal e, consequentemente, à falta de combustível. As duas instituições não responderam. O ministério também não respondeu se o coração disponível para doação se perdeu. “O paciente G.L.A. encontra-se na lista nacional de espera por transplante, em caráter prioritário e com acompanhamento da sua situação de saúde”, informou.
O Ministério da Saúde afirmou ainda que o possível doador surgido no dia 1º estava em Itajubá, “a 40 minutos de carro de Pouso Alegre, onde fica a pista de pouso mais próxima”. O registro da Central Nacional de Transplantes diz que era Pouso Alegre.
“O tempo para a realização de todo o procedimento, desde a retirada do coração do peito do doador até seu implante no peito do receptor não pode ultrapassar quatro horas, sob pena de insucesso do procedimento. Esse exíguo tempo dificulta a sua realização da retirada e do transplante em casos em que o potencial doador se encontra no interior do país”, diz a nota do ministério.
“A existência de um potencial doador com morte encefálica confirmada não significa que seu coração, por exemplo, possa ser utilizado ou mesmo possa ser adequado ao candidato a receptor primeiro colocado na lista de prioridades para transplante ou para qualquer outro candidato a receptor na lista de espera”, completa. Segundo o ministério, em 2014 foram mais de 5 mil voos para transporte de órgãos, de graça, na aviação civil.
O GLOBO
Nenhum comentário:
Postar um comentário